segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Pipa Avoada



A multidão se acotovelava e se empurrava, enquanto os batedores abriam caminho com bastões de choque para a passagem do caminhão-pipa. Catinga era um moleque esperto, e se esgueirava no meio da massa com os braços sobre a cabeça para se proteger, sem conseguir, no entanto, evitar alguns socos, enquanto procurava uma brecha, uma nesga em que a luz pudesse entrar. Porque ele precisava ver aquilo.

A grande Imprensa ficara em dores de parto a semana inteira. A micro imprensa estava toda lá, todos os cidadãos com seus dispositivos de comunicação global - sucessores dos antigos “telefones celulares”, prestes a transmitir para o mundo todo aquele disparate. Mas o novo prefeito Nikeson do Pagode queria comemorar em grande estilo, e não era homem de se deixar abater. Afinal, não fora fácil quebrar a cristocracia estabelecida na cidade, e seria o primeiro prefeito não-evangélico no Rio de Janeiro desde a sequência iniciada em 2004 por Cida Panipraça. De lá para cá, foram 9 mandatos cristãos, transformando a  cidade em um paraíso protestante. Ignorando o senso comum e as mazelas causadas pela Grande Guerra da Água de 32 (quando os africanos que restaram foram divididos entre os países ricos), comemoraria a quebra da hegemonia religiosa em grande estilo, como no tempo de seus pais: com um banho coletivo, fornecido por uma pipa d´água, para lembrar os vídeos do carnaval de rua que assistia no History Channel.

E Catinga não podia perder. Não conseguia imaginar um desperdício tão grande de um bem tão precioso. Já ouvira histórias de seu avô, contando que tomava banho com seus amigos em uma grande ducha que abastecia os caminhões no Jardim Catarina após o jogo de futebol – e eram bem antigas, já que este ainda não se mesclara ao MMA para gerar o porradobol - e ficava imaginando como seria ver a água jorrando em profusão, respingando. Pensava em algo como uma chuva, só que mais densa, e seu avô dizia que não, que a água descia em um jato da grossura de um braço! E caía toda por terra, dando-lhe uma consistência pastosa que os antigos chamavam de “lama”.

Agora, com os olhos ardendo pelo forte cheiro da multidão e seus quadris aquecidos e balouçantes, o menino sabia estar vivendo um momento mágico. Algo que contaria para seus netos, e esses para os seus, como a final da primeira copa do mundo de porradobol em que o Brasil se sagrou campeão após finalizar o goleiro do Qatar, a nação mais poderosa do mundo.

Enquanto Catinga se perdia em pensamentos, o caminhão-pipa se posicionara no centro da Praça da Bíblia, em frente à prefeitura nova. O prefeito Nikeson segurava uma mangueira, emprestada do museu do condado RioSampa apenas para essa finalidade. Os chips subcutâneos implantados nos tímpanos da população pediam calma e enviavam músicas antigas relaxantes, como Mr. Catra e Restart, mas era inútil. Os habitantes ignoravam os choques dados pela polícia governamental, e se agrediam para chegar perto do caminhão. Uma criança de colo caiu e foi esmagada sem chorar. Um joelho passou raspando pelo queixo de Catinga, que se projetou para frente no momento que Nikeson dava a ordem, e a água começava a jorrar da mangueira.

O menino parou, extasiado, e recebeu em sua pele ressecada os primeiros jatos de água. As luzes artificiais se multiplicavam nas gotas perdidas, fazendo uma explosão de luz banhar seu rosto. Catinga fechou os olhos e lambeu a boca, não sabendo se eram lágrimas que bebia – mas lágrimas não eram tão grossas! – e abriu os braços, segundos antes de sentir seus joelhos fraquejarem e sentir a primeira pisada em suas costas.

Morreu molhado e feliz.

2 comentários:

Anônimo disse...

A ironia presente no texto é a melhor parte sem duvida, e um final trágico para impactar não poderia falta, esse texto remete a época do professor que vivia iniciando historias incríveis para seus alunos durante as aulas de português, mas em diversas vezes não contava o final kk, é uma oportunidade incrível acompanhar à medida que se le o texto a mistura da personalidade do autor com esse professor que antes era modesto mas hoje (como ele mesmo diz) é perfeito.

Larissa Mitrof disse...

E como negar a graça da ironia?
Muito bom texto, boca do inferno!