A multidão se acotovelava e se
empurrava, enquanto os batedores abriam caminho com bastões de choque para a
passagem do caminhão-pipa. Catinga era um moleque esperto, e se esgueirava no
meio da massa com os braços sobre a cabeça para se proteger, sem conseguir, no
entanto, evitar alguns socos, enquanto procurava uma brecha, uma nesga em que a
luz pudesse entrar. Porque ele precisava ver aquilo.
A grande Imprensa ficara em dores
de parto a semana inteira. A micro imprensa estava toda lá, todos os cidadãos
com seus dispositivos de comunicação global - sucessores dos antigos “telefones
celulares”, prestes a transmitir para o mundo todo aquele disparate. Mas o novo
prefeito Nikeson do Pagode queria comemorar em grande estilo, e não era homem de
se deixar abater. Afinal, não fora fácil quebrar a cristocracia estabelecida na
cidade, e seria o primeiro prefeito não-evangélico no Rio de Janeiro desde a
sequência iniciada em 2004 por Cida Panipraça. De lá para cá, foram 9 mandatos
cristãos, transformando a cidade em um
paraíso protestante. Ignorando o senso comum e as mazelas causadas pela Grande
Guerra da Água de 32 (quando os africanos que restaram foram divididos entre os
países ricos), comemoraria a quebra da hegemonia religiosa em grande estilo,
como no tempo de seus pais: com um banho coletivo, fornecido por uma pipa
d´água, para lembrar os vídeos do carnaval de rua que assistia no History
Channel.
E Catinga não podia perder. Não
conseguia imaginar um desperdício tão grande de um bem tão precioso. Já ouvira
histórias de seu avô, contando que tomava banho com seus amigos em uma grande
ducha que abastecia os caminhões no Jardim Catarina após o jogo de futebol – e
eram bem antigas, já que este ainda não se mesclara ao MMA para gerar o
porradobol - e ficava imaginando como seria ver a água jorrando em profusão,
respingando. Pensava em algo como uma chuva, só que mais densa, e seu avô dizia
que não, que a água descia em um jato da grossura de um braço! E caía toda por
terra, dando-lhe uma consistência pastosa que os antigos chamavam de “lama”.
Agora, com os olhos ardendo pelo
forte cheiro da multidão e seus quadris aquecidos e balouçantes, o menino sabia
estar vivendo um momento mágico. Algo que contaria para seus netos, e esses
para os seus, como a final da primeira copa do mundo de porradobol em que o
Brasil se sagrou campeão após finalizar o goleiro do Qatar, a nação mais
poderosa do mundo.
Enquanto Catinga se perdia em
pensamentos, o caminhão-pipa se posicionara no centro da Praça da Bíblia, em
frente à prefeitura nova. O prefeito Nikeson segurava uma mangueira, emprestada
do museu do condado RioSampa apenas para essa finalidade. Os chips subcutâneos
implantados nos tímpanos da população pediam calma e enviavam músicas antigas
relaxantes, como Mr. Catra e Restart, mas era inútil. Os habitantes ignoravam
os choques dados pela polícia governamental, e se agrediam para chegar perto do
caminhão. Uma criança de colo caiu e foi esmagada sem chorar. Um joelho passou
raspando pelo queixo de Catinga, que se projetou para frente no momento que
Nikeson dava a ordem, e a água começava a jorrar da mangueira.
O menino parou, extasiado, e
recebeu em sua pele ressecada os primeiros jatos de água. As luzes artificiais
se multiplicavam nas gotas perdidas, fazendo uma explosão de luz banhar seu
rosto. Catinga fechou os olhos e lambeu a boca, não sabendo se eram lágrimas
que bebia – mas lágrimas não eram tão grossas! – e abriu os braços, segundos
antes de sentir seus joelhos fraquejarem e sentir a primeira pisada em suas costas.
Morreu molhado e feliz.