Meu
pai não era um cara muito carinhoso. Amoroso sim, carinhoso não, talvez por sua
criação dura e objetiva, na roça – por roceiros - ele demonstrava seu amor com
outros gestos, mas raramente por abraços e beijos (lembro-me de seu
constrangimento quando eu, já adulto, o beijava e dizia “eu te amo”). As
primeiras referências apaixonadas que tenho de meu pai era pelo Flamengo.
Brigas, xingamentos, êxtase, euforia. Não me lembro do jogo da final do Mundial
de 81 (revi há dois anos, e torci como se não soubesse o resultado), mas me
lembro de meu pai eufórico, bêbado, alegre. O patrão de meu pai no escritório
era tricolor, e tinha uma cadeira cativa no Maracanã – que usávamos lautamente,
exceto em Fla-Flus. Além do fato de lembrar de vários Flamengo x América x Bangu
x Vasco, o time das Laranjeiras para mim sempre representou o poder opressivo
da burguesia, do “rico”, mas isso é outra história...
1987
foi um ano complicado para este pequeno infante. A pressão psicológica exercida
por minha mãe no período pós-separação (isso hoje é chamado de Alienação
Parental) fez com que eu odiasse meu pai. Claro, não odiei meu pai em momento
nenhum, apenas mimetizei os sentimentos que minha mãe exalava, de frustração de
um casamento derrotado com dois filhos pra criar. Mas esse momento de
proatividade sentimental maldirecionada fez com que eu negasse os símbolos que
representavam meu pai, e um deles foi o Flamengo. Conduzido por minhas tias –
que apoiaram minha mãe nesse ocaso – decidi que simpatizava justamente pelo
algoz, o Fluminense (agradeço às circunstâncias – e à clássica leniência
feminina com o esporte bretão – por não ter foto alguma com este uniforme
abjeto). Torcer pelo Fluminense era apenas uma forma de somar ao coro
descontente da viúva de marido vivo e eu, sempre querendo apoiar, repetia a
ladainha. Até o gol de Renato Gaúcho.
Semifinal
da Copa União, eu vejo Renato Gaúcho partir quase do meio campo e decidir o
jogo que nos levaria à final – e ao campeonato brasileiro de 1987. Os olhos
brilhando, o bigode molhado de cerveja e os putaqueparius do meu pai haviam
criado raízes mais profundas que um coração partido. Naquele gol, naquele exato
momento, tudo era menor: Flamengo omnia vincit. Só fui me encontrar novamente
com meu pai algum tempo depois, e digo que a sensação de vê-lo foi a mesma
(alienação parental, afastamento dos filhos) que tive naquele gol de Renato
Gaúcho. Tudo daria certo novamente, o seu amor personificado descia do trem (ou
subia as escadas do Bloco 5 do Alcântara II, outra história pra outro dia) e fazia
sua alma crer (em um tempo em que eu ainda cria ter alma) que algumas coisas
são simplesmente para sempre.
Na
véspera de sua morte, o Flamengo jogara contra o Remo pela Copa do Brasil, e metera um 4X0. Eu
comprei o jornal na manhã seguinte para levar ao hospital, sabia que ia
deixá-lo feliz. Não deu, a hora chegou, partiu antes. E cada vez que comemoro
um gol do Flamengo, eu digo eu te amo, meu pai. Você me deixou muitas coisas,
mas talvez essa seja uma daquelas que você teria mais orgulho.